A sensação de ter lido uma história da realidade alternativa da Marvel Comics (O Que Aconteceria Se…) é o que se pode dizer após ver Pobres Criaturas. O livro do autor escocês Alasdair Gray, publicado em 1992, é efetivamente uma releitura de Frankenstein, que Mary Shelley escreveu em 1818.
No livro de Shelley conhecemos o Dr. Victor Frankenstein, que fez experimentos nada ortodoxos com cadáveres. Ele cria um monstro com várias partes de outros mortos, considerando-se o Todo Poderoso. Aliás, o toque final de sua egotrip é criar uma companheira para sua gigantesca criatura.
Quem quiser conhecer melhor a história, leia Frankenstein ou veja os dois filmes da Universal Pictures, Frankenstein (1931) e A Noiva de Frankenstein (1935), ambos com direção de James Whale.
Gray decide contar a história das experiências alucinadas do Dr. Godwin Baxter (Williem Dafoe), que deu vida ao cadáver de uma mulher grávida, que se jogou da ponte de Londres durante uma crise emocional (detalhes dessa crise tem relação com o final da história, ou seja, sem spoilers).
Godwin não apenas dá vida ao cadáver da mulher desconhecida, mas implanta o cérebro da criança não nascida na cabeça dela. E claro, ela ressuscita como uma mulher adulta com a mente de uma criança: Bella (Emma Stone).
Perdoe-me por revelar isso, mas ficaria difícil comentar o que vem a seguir sem que meu relato se transforme em uma história alucinada.
Bella começa a receber uma educação formal, para que seu cérebro comece a desenvolver atitudes para se transformar em um ser humano considerado normal. E é exatamente aí que mora o perigo. Detalhe: Emma está mais do que perfeita como Bella e certamente é merecedora do Oscar® desse ano, muito mais do que ela recebeu pelo esquecível La La Land: Cantando Estações..
Ao contratar o jovem médico Max McCandles (Ramy Yossef) para monitorar os avanços de Bella, acidentalmente, é aberta uma porta que jamais conseguirá ser fechada novamente: a libido de Bella.
O Oscar®
Bella, numa interpretação que definitivamente merece o Oscar®, descobre no sexo, a possibilidade de evoluir psicologicamente, questionando até mesmo sua relação com o Dr. Godwin, que ela chama carinhosamente de God. O trocadilho é proposital, já que o Dr. Frankenstein no livro de Mary Shelly tinha esse complexo.
Em um determinado momento, Bella decide sair de casa, aceitando um convite do advogado de Godwin, Duncan Wedderburn, feito por Mark Ruffallo, o Hulk dos Vingadores da Marvel, que também foi indicado ao Oscar®. O personagem é um milionário libertino que vê na jovem mulher a possibilidade de prazer sem limites. Tolinho.
Conforme a história avança, com o sexo desenfreado entre os dois, o público vai percebendo como Bella também vai questionando o que está acontecendo ao seu redor, sob as relações sociais e políticas daquela Era Vitoriana. O motivo subliminar é que Alasdair Gray era socialista e um dos que pregavam a independência da Escócia.
Nada mais progressista, em um filme que tem como personagem central uma mulher que vai dando uma banana para os machos de plantão, fazer com que Bella também tenha seus ideais socialistas. Como ela demonstra na cama com Toniette (Suzy Bemba), uma prostituta que Bella conhece em sua passagem por uma casa de luzes suspeitas em Paris.
Sexo providencial
Pobres Criaturas poderia ser considerado uma comédia de humor anárquico ou de puro sarcasmo, conforme toda a etiqueta social é jogada no lixo quando Duncan fica horas e horas no quarto, sendo cavalgado por uma insaciável Bella. Que não perde um segundo em descartar o amante, que sempre fez isso com outras mulheres.
O diretor grego Yorgos Lanthimos conversou sobre a adaptação de Pobres Criaturas com Emma Stone, quando os dois trabalhavam em A Favorita (2018). Emma, por sua vez, leio o livro e ficou fascinada com a personagem e, principalmente, com a entregar dramática que ela teria que fazer para convencer o público de que era uma mulher e evolução. O sotaque britânico que ela vai adquirindo ao longo do filme é perfeito.
Além das cenas de nudez, de sexo e de discursos socialistas, Bella é uma observadora da condição humana sem o rigor das normas sociais. Por isso, sua entrega ao sexo como forma de dizer: sim, eu posso e não me critiquem por isso. Sexo usado como instrumento narrativo.
É claro que isso acontece dentro desse universo paralelo, que ajuda e muito a contar essa realidade alternativa da realidade alternativa da obra-prima de Mary Shelley. E para demonstrar que se trata de outro universo, Yorgos usa e abusa de lentes olho de peixe (fishlens) e fotografia preto e branco.
São cenas pesadas que, em determinados momentos, conflitam com a leveza e a ingenuidade de Bella. Junte-se a isso, uma trilha sonora assustadoramente intensa, composta pelo novato no cinema Jerskin Fendrix. Uma trilha que parece ser um inconveniente personagem de um filme muito bizarro.
Pobres Criaturas é o filme perfeito para os dias politicamente efervescentes que Hollywood vive hoje, mesmo tendo sido rodado na Hungria por uma produtora inglesa. Assume as novas regras da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, com muita inclusão social e progressismos.
Mas sem um bom resultado de bilheteria: faturou desde o seu lançamento cerca de US$ 30 milhões no mundo inteiro. É uma realidade alternativa, mas o dinheiro é da realidade atual. Estreia em 1 de fevereiro distribuído pela Searchlight Pictures.

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