Crítica | Filme | O Bastardo

Crítica | Filme | O Bastardo

A Dinamarca é um país de invejável qualidade de vida. Baixa desigualdade, alto nível em educação, saúde e emprego. Longevidade exemplar. Parece que não há índice em que o país não se saia bem quando o assunto é oferecer uma vida invejável aos seus habitantes. O Bastardo mostra que o caminho até esse presente de bem-estar social está cravado de sangue, preconceito e injustiça.

Baseado em fatos e no livro The Captain and Ann Barbara, de Ida Jensen, O Bastardo conta a história de Ludwig von Kahlen. Militar de carreira, Kahlen se aposenta após 25 anos de serviços e se apresenta ao rei com uma proposta, provar que é possível cultivar as terras da Jutlândia, uma porção selvagem do território dinamarquês tida como selvagem demais para ser algo além do que um lugar de clima inóspito. A ideia é considerada absurda pelos nobres que de fato governam o país enquanto o rei Frederico V se dedica à nobre arte de manter-se bêbado. Mas Kahlen não pede dinheiro para seu projeto. Apenas, caso seja bem-sucedido, um título de nobreza com o dinheiro e os criados que acompanham tal benesse.

Proposta aceita pelos nobres certos de que ele vai fracassar, Kahlen parte para a Jutlândia disposto a fazer o que fez a vida toda, romper as barreiras impostas por sua condição de bastardo – filho de mãe cozinheira e pai nobre – com trabalho duro e retidão até que todos à sua volta sejam obrigados a reconhecer seu valor. Isso e a crença na lei que determina que o urzal da Jutlândia é terra do rei. Infelizmente, a região é dominada por Schinkel (Simon Bennebjerg), tipo bem-acabado de imbecil sem qualquer qualidade redentora que se diverte abusando e torturando quem trabalha em suas terras – atividades favorecidas pela lei que o torna proprietário dessas pessoas que sequer podem apelar ao judiciário, já que ele é também o juiz.

O que se segue é uma batalha entre Schinkel e o estoico Kahlen de Mads Mikkelsen, que por algum motivo ganha constantes papeis de vilão em Hollywood enquanto interpreta heróis em sua Dinamarca natal. Como a Jutlândia vista como inútil por sua própria natureza, Kahlen quer provar que é mais do que seu status social, que seu valor está em si mesmo e não no amor proibido – ou mais provavelmente estupro – que lhe deu origem. Com nossa moral do século 21, torcemos por esse homem que a contragosto dá cobertura a Johannes e Ann Barbara, casal de fugitivos das garras de Schinkel, abriga a menina Anmai Mus, parte de um grupo de Romanis, e aceita até o trabalho desse povo – o que era proibido por lei – na busca pelo sucesso que vai lhe dar o título que almeja. E que tanto vai colocá-lo no grupo que até então o despreza como vai mostrar que longe de um feito heroico a ser contado num épico como Beowulf – ambientado na Jutlândia – a nobreza pode significar simplesmente que alguém foi capaz de plantar batatas.

Mikkelsen é perfeito em deixar as emoções aparecerem aos poucos em Kahlen, pequenas fissuras que vão corroer seus planos, e o roteiro de Nicolaj Arcel, também diretor, e Anders Thomas Jensen encontra tempo para os personagens se desenvolverem, o vilão chegar às raias do absurdo, testemunharmos a superstição contra os Romani que séculos depois vai desembocar no Porrajmos, o genocídio dos povos Roma e Sinti mortos pelo nazismo, e o simples brotar de uma planta se assemelhar às explosões tão necessárias ao que se converteu o cinema nos últimos tempos. Não é pouco para um filme e é satisfatório ver longas que fazem seu tempo valer a pena. O Bastardo estreia em 12/9 distribuído pela Pandora Filmes.

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