É no mínimo delicado apontar como highlight do filme A Substância a nudez da atriz Demi Moore, do alto dos seus 61 anos de idade. Corre-se o risco de ser interpretado como sexista, machista e algum outro ista que estou esquecendo. Ainda mais sabendo que para muitos artistas, o corpo nada mais é do que uma ferramenta de trabalho. Que se azeitada e bem conservada, continuará funcionando anos a fio.
No caso de Demi, então, isso cai como uma luva. Outrora disputada à tapas para estrelar filmes como Proposta Indecente (1993), Assédio Sexual (1994) e Striptease (1996), a atriz foi deixando de lado projetos que exploravam sua beleza (com e sem roupa) e partindo para produções mais “comportadas” aos olhos da Motion Pictures Association.
A capa da Vanity Fair de 1991, com ela grávida em um nu bem artístico, já tinha colaborado para alimentar essa imagem, convenhamos. Mas como já disse, o corpo (nu ou não) de um artista é um meio para se atingir um objetivo: a construção de um personagem.
Tem gente que engorda para entrar no personagem, tem gente que emagrece, tem gente que raspa o cabelo (a própria Demi, aliás!) e tem até gente que arranca dente!
Bem, o fato de a atriz topar um nu frente e verso a esta altura da carreira não é exatamente inédito. Volte para 2022 (aqui mesmo no site do CriCríticos) e procure a crítica do filme Boa Sorte, Leo Grande. Quando Emma Thompson teve uma cena de nu frontal aos 64 anos de idade. Como disse na época, algo de bom gosto e que orna com a história.
Em A Substância é possível afirmar que a nudez também orna com a história. O bom gosto se torna questionável já que as cenas de nudez são alternadas por sequências um tanto escatológicas majoritariamente. Elas me lembraram David Cronenberg no seu recente Crimes do Futuro (2022). Em tudo. Escatologia, crítica social, tons carregados para contar uma história quase caricatural.
Ambas as produções assumem o tom de exagero para passar suas mensagens. De que por mais que a ciência evolua tentando prolongar a vida humana, a decadência física e mental vem para todos.
É frente a essa dura realidade que a atriz Elisabeth Sparkle (Demi Moore) testemunha o fim de sua bem-sucedidade carreira de apresentadora de programa de malhação, aos 50 anos de idade. Por mais que esteja em boa forma física, seu produtor (Dennis Quaid, nojento e escroto como nunca visto antes) a dispensa já pensando em uma substituta bem mais jovem.
Elisabeth acaba aderindo a um programa que promete acesso a uma “melhor versão de você mesma” a partir de procedimentos injetáveis estritamente rigorosos. A primeira injeção (a tal Substância) cria, a partir dela mesma, uma versão melhor e mais jovem da atriz (vivida por Margaret Qualley). Enquanto uma está ativa, a outra hiberna por sete dias e assim devem seguir, sempre alternadamente.
A versão (batizada Sue) necessita de um reforço diário de um líquido espinal gerada pela matriz ou começará a deteriorar. E ambas, enquanto dormem, precisam de um alimento esquisito, fornecido pela SAC da empresa. Se essas regras não forem burladas, as vidas das duas seguirão em frente paralelamente. Nunca simultaneamente.
E não é que a Sue tenta dar um chapéu na Elisabeth? Por essa ninguém esperava…
O conflito de A Substância reside na “coexistência” de Elisabeth com Sue em sua camada superficial. Do outro lado da tela, o espectador pode se aprofundar e detectar a crítica a essa obsessão contemporânea por uma latinha perfeita. A cultura da beleza exterior acima de tudo, da cirurgia plástica, dos implantes, dos Kens e das Barbies humanas.
Por falar em Barbie, se o filme estrelado por Margot Robbie fez barulho (pró e contra) ao trabalhar temas como feminismo, objetificação, preconceito e padrão de beleza entre outros, imagino que A Substância esteja sujeito ao mesmo. Por isso, dá para entender perfeitamente a escalação de Demi para viver Elisabeth. É praticamente metalinguístico (acho): uma atriz que tem flertado com esse estereótipo hollywoodiano por décadas interpreta uma atriz na mesma situação.
Tecnicamente, A Substância usa e abusa dos big closes para provar seu ponto de vista. Seja de uma ferida purulenta, seja do personagem de Dennis Quaid atacando camarões impiedosamente em uma refeição. A ideia é causar repulsa mesmo, portanto, não estranhe se você quiser desviar os olhos de tamanho nojo. Claro, a câmera fechada da diretora Coralie Fargeat também explora o belo em cena, seja no corpo das atrizes, seja nas imagens imortais (ou quase) de outdoors e pôsteres.
A Substância é interessante por tudo isso. Por suas referências (propositais ou não), por seu visual caprichadíssimo (a gente se sente em um clipe new wave), por seu tom crítico e muitas vezes absurdo (para provar seu ponto de vista) e por Demi Moore. Não por acaso, o filme foi ovacionado no mais recente Festival de Cannes, onde venceu o prêmio de Melhor Roteiro.
Agora, (opa, aqui tem spoilerzinho) o jato de sangue banhando a plateia parece ter passado da conta. Desse ponto em diante juro que me senti em um A Mosca (do Cronenberg) encontra Kill Bill (do Tarantino). O filme estreia em 19/9 distribuído pela MUBI e pela Imagem Filmes.

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