O filme Queer entrou em cartaz no Brasil em 12 de dezembro último trazendo consigo algumas peculiaridades. Como o fato de o longa ter seu roteiro baseado no romance homônimo escrito por William S. Burroughs nos anos 1950. Ou de o protagonista William Lee (personagem de Daniel Craig) ser alter ego de Burroughs, considerado um dos principais nomes da geração beat americana.
Pois o italiano Luca Guadagnino (Me Chame Pelo Seu Nome) foi encarregado de produzir e dirigir a versão cinematográfica da jornada que o beatnik fez pelas Américas Central e do Sul em busca de amor e de si mesmo. Daniel Craig, cuja carreira talvez ainda esteja muito atrelada à franquia 007, protagoniza Queer ao lado de Drew Starkey, deixando para trás qualquer resquício de macho alfa que o personagem criado por Ian Fleming possa ter imprimido nele. Tanto que o trabalho lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro.
CriCríticos acompanhou a coletiva de Queer, com a presença do diretor e dos dois atores. Confira a seguir alguns dos destaques dela.

Inspiração de décadas atrás
O primeiro a falar foi o diretor Luca Guadagnino que lembrou que suas ideias iniciais para conceber o visual e a atmosfera de Queer tiveram uma inspiração que veio de longe: “Eu diria que, formalmente, foi desde o momento em que li o livro, há 35 anos”, contou o diretor. Naquela época, ele já pensava em transformar a obra em um filme. Ainda jovem, aos 20 anos, escreveu um rascunho de roteiro e teve um primeiro instinto claro: o filme deveria se passar inteiramente no espaço da mente de William S. Burroughs.
A visão de Luca não envolvia locais reais. Ele queria criar um mundo reconstruído, uma representação do imaginário de Burroughs no México, na América do Sul e no Equador. Sua principal preocupação era usar as ferramentas do cinema para amplificar a experiência dos personagens William Lee e Eugene Allerton: “Como usar os cenários, as miniaturas, as paisagens desenhadas para amplificar aquilo que eles vivenciam em sua busca por amor e contato?”, questionou Luca, detalhando o impulso inicial que moldou a estética e o tom do filme.
Indo além, o diretor contou que no processo de adaptar o romance de Burroughs, ao invés de desafios, encontrou grandes oportunidades. Principalmente porque, segundo ele, teve a sorte de encontrar em Justin Kuritzkes um parceiro excepcional para a escrita: “Entreguei o livro ao Justin enquanto estávamos no set gravando Rivais. Isso foi provavelmente em maio de 2022″, lembrou Luca, “no mesmo dia começamos a conversar sobre o livro, sobre o impacto que ele teve em mim e o impacto que ele teve naquele momento no Justin”. Ambos concordaram sobre a grandiosidade e o caráter lendário da obra, além da particularidade de ser um romance inacabado.
Portanto, para Luca, adaptar o livro não foi um obstáculo, mas uma chance de explorar possibilidades criativas. Ele destacou que o projeto trouxe ambições ousadas: desde trabalhar com Daniel Craig e construir uma equipe extraordinária, até criar cenários elaborados e, ao mesmo tempo, alcançar intimidade ao narrar uma história de amor tão complexa: “Foram momentos lúdicos e belos de oportunidades e possibilidades, onde todos nós nos desafiamos mutuamente a ir além. Diria que jogamos muito bem juntos”, revelou o diretor, descrevendo o processo como leve e efusivo.
Ao falar sobre a construção das atuações, Luca ressaltou a abordagem intencional e colaborativa da equipe. Mesmo tratando de personagens frágeis, envolvidos em emoções profundas, o trabalho não seguiu um caminho tortuoso. Pelo contrário, foi conduzido com leveza e prazer: “Sempre com o princípio do prazer de fazer isso juntos”, explicou Luca, reforçando que a união entre diversão e ambição foi o que definiu a jornada. Para ele, o processo se resumiu a uma celebração das oportunidades criativas e do comprometimento coletivo em explorar as profundezas emocionais da história.
Elenco envolvido
O ator Daniel Craig comentou sobre sua relação com a obra de William S. Burroughs e como descobriu o autor mais a fundo durante o processo de preparação para o filme. Ele revelou que já conhecia Burroughs anteriormente, tendo lido Junkie anos atrás. No entanto, outras obras do escritor não faziam parte de sua trajetória literária até então.

A primeira vez que Daniel leu Queer foi quando começou a conversar com Luca Guadagnino sobre a possibilidade de fazer o filme. Esse contato inicial com o livro serviu como ponto de partida para um mergulho mais profundo na obra de Burroughs: “Desde então, li mais coisas dele e acabei me envolvendo muito mais”, explicou o ator. Durante o período de pesquisa para o papel, Daniel contou que passou a admirar o autor de uma maneira que não esperava: “Obviamente, com a pesquisa para o filme, você acaba se tornando fã de alguém conforme vai se aprofundando”, disse, “eu não era exatamente um fã dele, mas adorei descobri-lo”.
Como era de se esperar, perguntas sobre como Daniel Craig se preparou mental e fisicamente para interpretar um personagem tão complexo. Contudo, por mais diferente e intrincada que seja sua atuação como Lee, Craig tratou de simplificar a equação para os mais curiosos: o mais indicado é mergulhar de cabeça no processo!
Ele contou que seu método começa com a tentativa de encontrar uma voz para o personagem e entender quem essa pessoa é. Para isso, ele fez uma extensa pesquisa, leu bastante e teve conversas com especialistas.
No entanto, para Daniel, é no set que a verdadeira construção do personagem acontece. A performance, segundo ele, é influenciada diretamente por fatores imprevisíveis, como o clima do dia, o ambiente e, principalmente, a interação com os outros atores: “Você chega no set e tem que interpretar e é nesse momento que as coisas realmente começam a acontecer”, explicou.
Ele destacou ainda a importância da relação com Drew Starkey durante as gravações. Grande parte de sua atuação veio dessa conexão e da forma como interagiram um com o outro: “Eu não poderia me preparar para isso, nem tentar prever”, confessou, acrescentando que esse tipo de química é algo que se descobre no momento. Daniel elogiou o trabalho de Drew, a quem chamou de brilhante, e ressaltou o talento de todo o elenco. Para ele, atuar ao lado de colegas tão talentosos foi essencial para o resultado final.
O luxo do tempo
Já Drew Starkey, por sua vez, explicou que teve um presente raro em sua preparação para o papel: tempo. Ele explicou que foram cerca de quatro meses permitindo que o material amadurecesse com ele, enquanto iniciava conversas com Luca Guadagnino e Justin Kuritzkes. Esse tempo permitiu um aprofundamento gradual no universo do filme. Em seguida, ele conheceu o restante do elenco em Nova York, onde participaram de leituras de mesa e de discussões colaborativas sobre o tom da história: “Sempre fico preocupado em tentar entender o tom logo no início”, confessou, para ele, uma de suas maiores preocupações como ator. “Qual é a ‘cor’ do mundo no qual estou entrando? E o benefício aqui foi que, com a forma como o Luca se comunica, você sabia exatamente em que mundo estava pisando. Isso foi inestimável”, destacou.

Assim como Daniel Craig, Drew começou sua preparação encontrando a voz do personagem. Ele passou por várias variações até finalmente chegar à versão ideal. Além disso, perdeu peso intencionalmente, buscando uma silhueta que se encaixasse na imagem de um homem daquela época, especialmente como ele seria percebido pelos olhos de William Lee e das pessoas ao seu redor: “Muito do Allerton está relacionado à forma como ele é visto”, explicou Drew. Para ele, encontrar a voz, o jeito de andar e o tipo físico do personagem foram etapas fundamentais.
Chegando em Roma, Drew teve a oportunidade de trabalhar com o departamento de adereços e com Jonathan Anderson, responsável pelo figurino. Ele descreveu esse momento como o ponto de solidificação do personagem: “Quando vesti o figurino, pensei: ‘Ah, é isso. Esse é o cara'”. Para o ator, parecia uma continuação do trabalho que havia feito sozinho durante os meses anteriores. Mas ele reforçou que tudo se encaixou de verdade apenas quando estavam todos juntos no set, compartilhando a experiência de dar vida àquele universo.
Silêncio vale ouro
Drew Starkey refletiu também sobre os desafios de interpretar seu personagem em Queer e destacou que, para ele, tudo sempre parece um grande desafio. O processo começou com a leitura do roteiro, quando percebeu que Allerton não tinha muitas falas: “Isso era algo que eu nunca havia enfrentado como ator”, revelou. Drew precisou aprender que o silêncio não significa ausência de significado. Em conversas com Luca Guadagnino, encontraram pequenos detalhes no comportamento do personagem que traziam profundidade à atuação: “Afinal, um gesto vale mais do que mil palavras”, explicou.
No início das gravações, especialmente na primeira semana, Drew sentia que não estava fazendo muita coisa. Com o tempo, porém, ele aprendeu a se concentrar no momento presente e a deixar as coisas acontecerem naturalmente. A interação com Daniel Craig foi, segundo ele, libertadora. Contracenar com Daniel ajudou a traduzir a essência do personagem. Drew descreveu essa experiência como um exercício de restrição: ele sentia a necessidade de expressar o que se passava internamente, mas sabia que o personagem não podia fazê-lo: “Sentir essa restrição em mim mesmo ajudou a transmitir a vontade e o desejo de falar, mas sem conseguir, que está presente no personagem”, concluiu.
Daniel Craig também compartilhou sua perspectiva sobre os desafios durante as filmagens, mas destacou que não costuma olhar para trás e pensar no que foi difícil. Para ele, a memória mais marcante é o entusiasmo e a emoção de trabalhar com Luca Guadagnino e um elenco talentoso, incluindo Drew Starkey, Lesley Manville e Jason Schwartzman, nos famosos estúdios de Cinecittà: “É uma emoção imensa”, afirmou Daniel.
Claro, ele reconheceu que houve dias difíceis e momentos complicados, especialmente no processo de descobrir a melhor forma de dar vida ao filme. No entanto, Daniel elogiou a liderança colaborativa de Luca, que sabia exatamente o que queria, mas ao mesmo tempo trazia todos para perto, ouvindo opiniões e estimulando melhorias: “A pergunta sempre era: ‘Podemos fazer melhor? Podemos tornar isso mais interessante? Podemos torná-lo mais bonito?'”, explicou o ator. Para ele, esse ambiente criativo trouxe segurança e energia ao trabalho, transformando os desafios em algo que ele prefere não lembrar como dificuldades: “Só consigo me lembrar do quão emocionante foi”, finalizou.

Caetano Veloso
Por último, Luca Guadagnino comentou sobre a música original que encerra Queer, uma peça profundamente significativa tanto para a narrativa quanto para o espírito da obra. A canção, intitulada Vaster Than Empires, é uma composição de Trent Reznor e Atticus Ross, com a letra retirada dos diários de William Burroughs. Luca explicou que essa letra foi baseada na última anotação escrita por Burroughs, registrada três dias antes de sua morte: “São palavras que ele escreveu, e a última palavra em seu diário é ‘amor’”, revelou o diretor, destacando como essa escolha reforça o tema central do filme. “Estávamos no caminho certo ao dizer que essa seria uma grande história de romance e amor”, relembrou.
Além da importância emocional da letra, Luca destacou a colaboração especial que trouxe ainda mais significado à música. A canção é interpretada pelo músico brasileiro Caetano Veloso, um dos artistas que ele mais admira e que faz um dueto inesquecível com Trent Reznor. Para Luca, ter esses dois nomes envolvidos no projeto é uma de suas maiores conquistas: “Você tem Caetano Veloso e Trent Reznor fazendo um dueto nessa canção, o que, para mim, é uma das grandes conquistas desse projeto, além de trabalhar com esses incríveis artistas”, afirmou com entusiasmo. Conquista compartilhada pelos brasileiros também.
