Um conflito intenso se desenrola na família Charles, centrado em um piano herdado. De um lado, o irmão (John David Washington) deseja vendê-lo para impulsionar a prosperidade familiar. No outro extremo, a irmã (Danielle Deadwyler) está determinada a preservar o único símbolo tangível de sua herança. Enquanto isso, o tio (Samuel L. Jackson) tenta atuar como mediador, mas se vê confrontado por traumas e lembranças de seu próprio passado.
Essa é a história de Piano de Família (The Piano Lesson), filme baseado na premiada peça de August Wilson, vencedora do Pulitzer, e que chegou à Netflix em 22/11. O longa aborda as complexas relações entre diferentes gerações, refletindo sobre identidade, perseverança e superação. E revela verdades impactantes sobre como enxergamos o passado e quem realmente define nosso legado.
Um dos grandes méritos de Piano de Família é ter sido produzido pelos indicados ao Oscar®, o ator Denzel Washington e o produtor Todd Black. E dirigido por Malcolm Washington, que assina o roteiro ao lado de Virgil Williams. Conta ainda com um elenco de peso que inclui Samuel L. Jackson, John David Washington e Ray Fisher, entre outros.
CriCríticos esteve na coletiva de Piano de Família ao lado dos três membros da proeminente família Washington (Malcolm, John David e Denzel) e do produtor Todd Black. Confira os destaques dessa conversa a seguir.
Paixão pelo cinema
O diretor debutante Malcolm Washington, destacou o que o motivou a escolher este projeto em particular. Para ele, foi uma oportunidade incrível de trabalhar com grandes artistas, algo que considerou extremamente empolgante: “Eu amo cinema. Amo fazer filmes. Amo assistir filmes. É a linguagem que eu falo”, comentou Malcolm, refletindo sobre sua paixão pela Sétima Arte.

Ao transformar a peça em um filme, ele viu a chance de expandir e explorar os temas marcantes da história em uma nova linguagem visual. Essa possibilidade de adaptação foi o aspecto mais emocionante para ele. Além disso, Malcolm enxergou o projeto como uma maneira de honrar a obra original em sua essência mais pura, mantendo fidelidade ao material enquanto o reinterpretava no formato cinematográfico.
O diretor ainda compartilhou um dos principais aprendizados que teve com Spike Lee (com quem seu pai, Denzel, trabalhou em várias oportunidades), a quem considera um de seus primeiros mentores. Ele contou que, ao iniciar o projeto, ligou para Spike em busca de conselhos, e uma das primeiras coisas que ouviu foi sobre a importância de escolher bem os colaboradores.
Spike se destacou por construir uma comunidade diversa de cineastas, tanto atrás quanto na frente das câmeras, é essencial para um projeto bem-sucedido: “Incluindo todos os níveis de produção, com uma diversidade de opiniões, pensamentos e experiências”, explicou Malcolm, refletindo sobre o impacto dessa orientação.
A verdadeira produtora
Esse conselho foi determinante para o foco do jovem diretor, tanto na escolha do elenco quanto na formação da equipe. Ele priorizou trazer pessoas de origens variadas, com visões de mundo e experiências de vida distintas, que pudessem se unir para dar voz ao projeto. Para Malcolm, essa abordagem colaborativa e inclusiva foi fundamental para a realização de seu filme.

E foi seu pai, Denzel Washington, que relembrou como tudo começou quando descobriu que seu filho Malcolm queria dirigir um filme e que o projeto incluiria seu outro filho, John David. Ele destacou que a verdadeira produtora da família é Pauletta Washington, sua esposa e mãe dos dois: “Quem realmente produziu foi a mãe deles. Ela é a verdadeira produtora”, comentou Denzel com humor.
Ele contou que foi Pauletta quem deu o primeiro passo, sugerindo que ele conversasse com Malcolm. “Na verdade, foi ela que me disse: ‘O Malcolm tem algumas ideias. Você deveria conversar com ele e organizar algumas coisas'”, revelou Denzel, explicando que esse momento marcou o início do projeto.
Malcolm Washington comentou que, desde o início, estava em diálogo constante com seu irmão, John David, sobre o potencial do filme. Ele contou que essas conversas ajudaram a moldar sua visão do projeto: “Eu estava conversando com o John David, desde o início, sobre o que eu achava que o filme poderia ser”, explicou Malcolm. John David também o incentivou a dar os primeiros passos práticos, sugerindo que ele começasse a trabalhar no roteiro e colocasse suas ideias no papel. Esse apoio foi essencial para transformar o projeto em realidade.
O capitão certo
Todd Black, produtor do filme, relembrou suas conversas com Denzel Washington, com quem já havia trabalhado anteriormente em Um Limite Entre Nós e A Voz Suprema do Blues. Durante essas discussões, eles refletiram sobre a importância de garantir que seus futuros projetos tivessem o “capitão certo” para liderá-los: “Queríamos garantir que, daqui para frente, sempre tivéssemos o capitão certo, alguém que pudesse continuar avançando e trazendo novos públicos”, explicou Todd. Essa preocupação em manter a qualidade e a relevância de seus trabalhos foi um elemento central para moldar a parceria e os projetos que seguiram. Segundo Denzel, “Nós queríamos um diretor mais jovem”.

Black complementou que buscavam uma voz jovem e visionária que pudesse trazer uma nova perspectiva. Foi então que Malcolm entrou em cena, apresentando uma visão única que impressionou tanto Todd quanto Denzel Washington: “Quando ele começou a conversar com o Denzel e comigo, ele apresentou uma visão que nós não tínhamos”, relembrou Todd. Segundo ele, Malcolm trouxe uma abordagem muito clara, interessante e profundamente cinematográfica: “Ele tinha um domínio sobre o projeto que ninguém mais tinha”, concluiu, destacando a confiança que Malcolm transmitiu desde o início.
Obra reinterpretada
Um dos desafios para Malcolm Washington, coautor do roteiro, foi adaptar a peça original à tela grande dentro de uma abordagem espiritual. Ele explicou que o objetivo era reimaginar e reinterpretar a obra para o novo meio, explorando as profundezas dos personagens: “Isso envolveu visualizar e imaginar: ‘Quais são os sonhos dos personagens? Quais são seus desejos? O que eles imaginam para si mesmos? Como podemos construir o mundo ao redor deles e apresentar isso ao público?'”, refletiu o diretor.

Entre as adições ao filme, ele citou sequências inéditas, como a no Crawford Grill, a participação de Erykah Badu, além de um novo início e final. Essas mudanças foram criadas para contextualizar a história dentro do universo cinematográfico, ampliando a narrativa e dando mais profundidade ao enredo. Malcolm também destacou a exploração de elementos de gênero, explicando que, embora o filme conte uma história de fantasmas, ele reflete sobre a história americana e as práticas espirituais afro-americanas: “Tudo isso sob a ótica de uma narrativa de fantasmas, algo que pudemos trazer para o primeiro plano”, acrescentou.
Para Malcolm, o processo foi mais do que uma adaptação; foi uma reimaginação dos elementos e temas da peça, buscando maneiras criativas de contar a história de forma cinematográfica, preservando sua essência e expandindo suas possibilidades.
Desafios da estreia
Em sua estreia como diretor, Malcolm Washington destacou a importância de confiar em sua própria voz. Ele reconheceu que estava trabalhando dentro de um legado enorme, reverenciando a obra de August Wilson, mas também sabia que era necessário ir além. “Não era suficiente apenas refazer a peça, não estávamos interessados em fazer isso”, afirmou Malcolm.
Para ele, o desafio foi encontrar um equilíbrio entre honrar o legado de Wilson e ousar construir sobre ele. Isso exigiu coragem para imaginar além das limitações do teatro e fazer escolhas que pudessem transformar a história, trazendo-a para novas gerações: “Tínhamos que nos colocar na obra e ousar ir além dela. Ousar imaginar fora das paredes do teatro”, explicou.
No final, Malcolm acredita que esse esforço foi recompensado. Ao se arriscar e expandir a narrativa, ele e sua equipe conseguiram, ao mesmo tempo, honrar o trabalho de August Wilson e transmitir suas intenções originais de maneira fiel e renovada. Para ele, essa busca por inovação tornou o filme não apenas um tributo, mas também uma evolução da obra.
Reflexos da obra original
Como ator experiente, John David Washington falou sobre a complexidade de seu personagem no filme e como o luto é retratado de maneira multifacetada. Ele destacou que essa abordagem é um reflexo da escrita de August Wilson, que constrói seus personagens de forma esférica, com múltiplos elementos em ação simultaneamente: “Ele não aborda os personagens de maneira linear. Existem paralelismos sinônimos abundantes”, explicou John David.

Na peça original, o personagem frequentemente repete seus planos de ação, dizendo coisas como: “Primeiro faço uma parte, depois a segunda parte”. Para John David, essas repetições têm significados mais profundos: “O que ele está realmente dizendo? Há algo que ele está tentando transmitir”, questionou. Ele considera que essas falas podem remeter à recuperação da terra, ao legado de sua família, ao amor ou arrependimento em relação a eles, ou até mesmo a uma busca por validação. “Tudo isso pode estar acontecendo”, acrescentou.
O ator também destacou as nuances do personagem, incluindo sua relação paradoxal com Deus, com a fé e com sua mãe: “Talvez ele pense mais na mãe do que dá a entender. Tudo isso está em jogo”, comentou. John David elogiou a habilidade de August Wilson em colocar todos esses elementos no diálogo, permitindo que os atores utilizem essas falas como pano de fundo, mesmo que elas não sejam ditas diretamente no filme. “No filme, visual e cinematicamente, podemos combinar nossos esforços como atores com esses elementos”, afirmou.
Ele também ponderou sobre a atitude dura e a fisicalidade do personagem, considerando que podem ser mecanismos de defesa para lidar com o que ele realmente enfrenta internamente. Para John David, essa complexidade é o que torna o trabalho de August Wilson tão rico e desafiador, proporcionando múltiplas camadas para explorar na atuação.
Conceitos conectados
Voltando para Malcolm Washington, ele refletiu sobre as tensões entre preservar o patrimônio e buscar progresso econômico, temas centrais de Piano de Família, e destacou sua relevância para o público contemporâneo. Ele observou que esses conceitos, embora frequentemente apresentados como opostos, estão profundamente conectados: “A questão econômica está relacionada ao mesmo tema: como seguimos em frente? Como vivemos nossas vidas e prosperamos?”, questionou Malcolm, explicando que a busca por estabilidade financeira é uma parte importante desse progresso, representada no filme pelo personagem Boy Willie (vivido por John David).
Ele destacou que Boy Willie tenta realizar o sonho americano para si mesmo: conquistar seu pedaço de terra, sua cerca, e um espaço próprio para crescer e prosperar junto com sua família. No entanto, ele acredita que é essencial confrontar não apenas essa ideia, mas também a noção de legado: “Por que essas duas coisas precisam estar em conflito?”, perguntou Malcolm, sugerindo que ambas podem coexistir e se complementar.
Para ele, a preservação do patrimônio é mais do que uma conexão com o passado; é uma forma de nutrir espiritualmente as próximas gerações. “Porque é isso que realmente vai te nutrir, sabe? É isso que vai realmente nutrir a próxima geração”, afirmou. O diretor destacou que as lições transmitidas pelos personagens mais velhos, como Doaker e Wining Boy, para Boy Willie e Berniece, têm Maretha como destino final: “É Maretha quem terá que lidar com tudo isso e será encarregada de levar isso adiante”, explicou.
Ele concluiu ressaltando que ambas as perspectivas – a busca pelo progresso econômico e a valorização do legado – são igualmente necessárias para construir um futuro equilibrado e significativo.

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