No episódio O Demônio da Escuridão da série Star Trek exibido em 1967, a tripulação da nave Enterprise vai a um planeta onde mineradores estão sendo mortos. Finalmente, o contato revela que as mortes não são causadas por um monstro, mas por uma criatura inteligente.
Guarde essa ideia, a referência vai fazer sentido quando você assistir Mickey 17, o novo filme do diretor coreano Bong Joon Ho, de Okja, Expresso do Amanhã e, claro, Parasita. Estreia em 6/3 distribuído pela Warner.
No longa baseado no livro Mickey 7, de Edward Ashton, Robert Pattinson é um cara sem sorte que aceita participar de uma missão espacial para fugir de um agiota. O projeto, liderado pelo político Kenneth Marshall (Mark Ruffallo), e sua esposa Yffa (Tony Collette), pretende colonizar o planeta Niflheim. No desespero, Mickey aceita ser um descartável (“prescindível” no livro), alguém que vai efetuar as tarefas mais perigosas e mortais e para isso tem seu corpo e suas memórias escaneadas e armazenadas. Quando morre, seja por fazer manutenção no casco da nave ou servir de cobaia, Mickey é reconstruído por um equipamento similar a uma impressora 3D, seguindo em frente como cópia de si mesmo. Como o nome do livro anuncia, Mickey já passou pelo processo algumas vezes, número inflacionado no filme, onde Bong Joon Ho exercita seu humor cáustico em cena sobre cena do rapaz saindo do equipamento como uma folha de sulfite meio enroscada ou a cópia pirata de uma figura de ação. Em outras palavras, na fuga da morte certa decretada pelo agiota, Mickey ganhou a maldição da morte repetida e da vida eterna.
É aqui que o encontramos caído numa vala, pronto para ser devorado por um “creeper”, como os terráqueos chamaram os bichos de Niflheim. Quando, ao contrário, a criatura devolve Mickey à superfície, sua reação não é de alívio, mas perguntar se as constantes mortes não prejudicaram o sabor de sua carne.
Mas, o pior está por vir. Ao voltar para a base, Mickey descobre que sua versão 18 já estava pronta e devidamente “entrosada” com sua namorada, Nasha. A vida simultânea de duas versões é proibida, o que coloca Mickey novamente no rumo de ser morto. A diferença é que, embora clones, os Mickeys são indivíduos diversos, o que Pattinson trabalha na postura e expressão com eficiência. Enquanto isso, Ruffallo se dedica a uma óbvia caricatura de Donald Trump com tantas caretas que dá vontade de avisar ao diretor que sim, a gente entendeu quem é o alvo da coisa toda. Ao lado do marido, Yiffa é grotesca como a típica esposa de político com uma estranha obsessão por molhos que nos leva ao clímax com os “creepers” e a conexão com Star Trek. É, os animais não são tão animalescos assim.
Os temas são os mesmos que Bong Joon Ho explorou em seus outros filmes, poder, classe social, política, corrupção, preconceito e raça, com a mesma soma de comédia, cenas grotescas e exageros, embora o roteiro não dê uma explicação do porquê Marshall discursa sobre criar uma colônia de brancos mas tripulou sua nave com afrodescendentes e asiáticos. Não é a única falta de lógica no longa que simultaneamente satiriza o colonialismo, o fascismo e todo o resto do espectro político. O ritmo se arrasta por alguns momentos e os muitos vômitos não são para qualquer um, mas os alvos merecem a crítica e as constantes perguntas dos colegas de Mickey sobre como é morrer – afinal, ele foi e voltou para contar – são um ponto interessante.
