Considerado o Rei das Minisséries, o cinema e a televisão dão seu último adeus ao eterno Dr. Kildare, que faleceu neste final de semana, em sua casa no Havaí, por complicações após um derrame.

Em Era uma Vez em Hollywood, Quentin Tarantino expõe uma divertida tese de que todo ator que faz herói em série de TV invariavelmente trabalha como vilão como astro convidado em uma nova série onde não é protagonista. Ao ver a carreira de Richard Chamberlain, nada poderia ser mais verdadeiro e divertido ao mesmo tempo.

Nascido George Richard Chamberlain, em Beverly Hills, o futuro ator se formou em Artes e História no Pomona College e logo foi convocado para o serviço militar entre 1956 e 1958. Conquistou o posto de sargento, lotado no QG americano em Seul, no pós-guerra da Coreia. Pensou em seguir carreira militar, mas, naquele momento, o Exército ainda tinha uma política restritiva à orientação sexual. Richard assumiu publicamente sua homossexualidade aos 69 anos, quando lançou sua autobiografia em 2004, Shattered Love: A Memoir.

Ao voltar de Seul, Richard decidiu realizar um antigo sonho de se tornar ator de teatro. Ajudou a fundar o grupo Company of Angels, que o auxiliou a trabalhar em pequenas montagens de teatro e conseguir participações especiais em séries como Alfred Hitchcock Suspense, Gunsmoke, Impacto e Brigada 8, até ser chamado para ser o jovem Dr. James Kildare.

O personagem nasceu nos livros pulp fiction de Frederick Schiller Faust, na década de 30, fazendo enorme sucesso entre jovens leitoras. Em 1937, ganhou sua primeira versão no cinema, estrelado por Joel McCrea, no filme Escravos do Dever. Foram mais 15 longas apresentando o jovem médico e seus colegas do Blair General.

Ao passar nos testes para a nova série baseada nos personagens de Schiller, Richard Chamberlain jamais poderia imaginar como sua vida e sua carreira mudariam ao interpretar a nova versão do Dr. Kildare na televisão. Assim como o personagem dos filmes dos anos 40, a série focava no dia a dia do jovem interno James Kildare e sua relação com seus pacientes. Ao lado dele estava o veterano Raymond Massey (Daqui a Cem Anos), como o mentor de Kildare, Dr. Leonard Gillespie. É ele quem dá a direção que o personagem de Kildare seguiria, ao dizer no primeiro episódio ao jovem médico: “Nosso trabalho é manter as pessoas vivas, não dizer a elas como viver.”

A série foi um sucesso de audiência em 1961, levando Richard a ganhar o Globo de Ouro. Curiosamente, ele participaria do crossover entre Dr. Kildare e o drama médico The Eleventh Hour, em 1963. Ele também foi o responsável pelo sucesso do tema de abertura da série, ao gravar “Three Stars Will Shine Tonight”, que chegou ao 10º lugar nas paradas de sucesso, de acordo com a mais importante revista do mercado musical, a Billboard.

Em tempo: a revista TV Guide, o maior guia de programação de TV do mundo, publicou uma lista em 2005 dos 25 Maiores Ídolos dos Adolescentes da TV, na qual o Dr. Kildare ficou em sétimo lugar.

Dr. Kildare ficou cinco temporadas no ar e se transformou em um grande marco da história da TV americana, ao mostrar o dia a dia dos médicos de um grande hospital, criando base para outros sucessos que viriam, como Centro Médico (1969), E.R. (1994), Scrubs (2001), Grey’s Anatomy (2005), entre outras. Aliás, o canal americano TV Land faria uma paródia de Anatomia de Grey, colocando vários personagens de séries antigas neste especial. Richard Chamberlain retornaria ao papel de Dr. Kildare, assim como vários personagens de Julia (1968), M.A.S.H. (1972), O Barco do Amor (1977) e St. Elsewhere (1982).

Mesmo depois de fazer sucesso na telinha, Richard Chamberlain continuou trabalhando no teatro, fazendo musicais como Bonequinha de Luxo, A Noviça Rebelde e Minha Bela Dama. Ele também foi para Londres trabalhar em várias peças e fazer um curso para treinar sua voz para outro desafio nos palcos: Hamlet, o clássico texto de William Shakespeare.

Sua carreira no teatro, cinema e televisão sempre foi muito ativa. Lembrando a tese de Tarantino, Richard fez seu primeiro vilão nas telas com grande sucesso mundial em Inferno na Torre, de 1974. Para quem não se lembra, ele interpretava um ambicioso empreiteiro que reduziu custos na compra de material para a infraestrutura do mega prédio em São Francisco, que se tornou o inferno de vidro do filme.

Enquanto dividia o sucesso entre filmes e teatro, Richard Chamberlain acabou conquistando um espaço forte na televisão, ao trabalhar em várias minisséries importantes, o que lhe rendeu o divertido apelido de Rei das Minisséries. Entre elas estão Centennial (1978), Shogun (1980), pelo qual ganhou o Globo de Ouro, Pássaros Feridos (1983), série que fez o SBT ganhar a briga pela audiência contra a Globo, que exibia Roque Santeiro; o faroeste Dream West (1986); Missão Matar (1988), primeira adaptação do livro de Robert Ludlum, Identidade Bourne, no qual interpretou o assassino sem memória Jason Bourne; A Vida Secreta de Boris Duke (1999) e Barba Negra (2006).

No cinema, ele esteve em adaptações de sucesso dos livros de Alexandre Dumas: Os Três Mosqueteiros (1973), A Vingança de Milady (1974) e A Volta dos Mosqueteiros (1989), onde interpretou o mosqueteiro Aramis, além dos herdeiros gêmeos da corte francesa em O Homem da Máscara de Ferro (1977). Curiosamente, Richard e o astro francês Gérard Depardieu interpretaram personagens icônicos da literatura clássica escrita por Alexandre Dumas, em O Conde de Monte Cristo e Cyrano de Bergerac.

Ainda no cinema, ele interpretou o personagem Allan Quatermain, criado por Henry Rider Haggard no século 19, como o grande caçador e explorador no coração da África. Richard estrelou a nova versão de As Minas do Rei Salomão (1985) e também Allan Quatermain e a Cidade do Ouro Perdido, lançado no ano seguinte.

Após a publicação de sua biografia, os produtores da série Desperate Housewives o convidaram para uma participação especial no episódio Passado Distante, da quarta temporada. Ele interpretou o pai de Lynette (Felicity Huffman), que volta a se reencontrar com a filha após anos sem contato e assumindo sua homossexualidade. Ele também esteve em Will & Grace, Chuck e Brothers & Sisters. Seu mais recente trabalho na telinha foi na volta de Twin Peaks, em 2017.

Ele se mudou para o Havaí, onde foi presidente honorário do conselho consultivo da Hawaii Public Television Foundation. Ele dizia que sua mudança lhe permitiu se dedicar à pintura, especialmente paisagens. Ganhou uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood em 2000. Seu último trabalho no teatro foi no Pasadena Playhouse, interpretando o Dr. Sloper na peça Tarde Demais, de Ruth e Augustus Goetz.

Richard Chamberlain teve uma carreira que o levou ao sucesso no teatro, na televisão e no cinema. Escreveu um livro importante no qual mostrava a todos que viver sem se conhecer era uma vida sem reconhecimento. Hoje, seus fãs sentirão sua falta, seja como o jovem médico idealista, um aventureiro em busca de um objetivo ou um ator que soube mostrar ao público como é importante saber viver a vida.