Crítica | Série | O Eternauta

Crítica | Série | O Eternauta

Quando Robert Kirkman começou a publicar The Walking Dead em 2003, pela Image, muito do que conhecia da história de mortos-vivos que se alimentavam de carne humana vinha de A Noite dos Mortos-Vivos, de 1968. Foi George A. Romero, diretor e roteirista desse clássico da ficção, quem criou o conceito de mortos devoradores de gente, sem que ninguém soubesse como isso aconteceu.

Robert Kirkman usou esse mesmo conceito para conceber sua saga dos mortos que andam para a Image Comics com The Walking Dead. A série de TV lançada em 2010 fez sucesso no mundo todo e gerou vários spin-offs com mortos-vivos. É claro que a ideia básica não é apenas combater essas aberrações, mas sobreviver nesse mundo onde os mortos voltaram à vida.

Essa meia ideia gerou um conceito relacionado à sobrevivência num mundo pós-apocalíptico que nem sempre está ligado à Terceira Guerra Mundial e cogumelos nucleares. Séries como The Last of Us e Fallout, baseadas em videogames de sucesso, também analisam a sobrevivência humana frente a essa mortal diversidade.

É por isso que, ao assistir à série O Eternauta, que chegou há poucos dias à Netflix, nos deparamos com uma luta pela sobrevivência contra um inimigo desconhecido, que sabe usar o meio ambiente contra os humanos sobre a Terra. A série é uma adaptação dos quadrinhos da dupla Héctor Germán Oesterheld (roteiro) e Francisco Solano López (desenhos), publicada na revista argentina Hora Cero Semanal, entre 1957 e 1959.

A série conta a história de Juan Salvo, um homem que se diz vindo do futuro, narrando os estranhos acontecimentos que ocorreram na época de onde ele veio. Começando com uma estranha nevasca tóxica que dizimou milhares de pessoas no país — até onde ele podia saber. A história mostra ainda o que Juan e outros sobreviventes dessa hecatombe fazem, especialmente quando são obrigados a enfrentar a força que provocou a nevasca. Uma luta bem desigual, afirma o viajante do tempo.

Não é possível continuar narrando os acontecimentos para não revelar informações impactantes da história original. É uma adaptação bem consistente, que alterou alguns detalhes da trama original para facilitar o entendimento. As discussões políticas inferidas no texto original foram colocadas de outras formas pelo diretor e roteirista Bruno Stagnaro, criador da série. Ele e Ariel Staltari, que também adaptou a série, optaram por focar no drama pessoal de cada personagem frente ao desconhecido.

Sim, existem embates sobre dominação por armas e poder cego, sem que se pare a trama para discussões acaloradas sobre usar ou não armas para sobreviver a esse desconhecido. Quando a história começou a ser publicada nos quadrinhos dentro da Hora Cero Semanal, O Eternauta se transformou num marco da luta contra a repressão política, trazendo questões existenciais relevantes.

Héctor se uniu ao grupo Montoneros e acabou sendo raptado pelas forças militares do governo argentino, sendo dado como desaparecido desde 1977.

A série é um marco na história da produção cinematográfica argentina. Os produtores decidiram usar a própria capital, Buenos Aires — cenário da trama do gibi —, para uma adaptação certeira. Os efeitos visuais que colocam sob neve vários marcos históricos da capital portenha não deixam a desejar, especialmente para mostrar o sentimento de impotência dos personagens diante do caos causado pela neve mortal.

É claro que o destaque do elenco é Ricardo Darín como Juan Salvo. Descoberto pelo mundo com o filme Nove Rainhas (2000), o ator fez sua carreira na televisão nos anos 70, construindo uma imagem de ícone nacional argentino. Uma imagem que o colocou em sucessos internacionais como O Segredo dos Seus Olhos (2009), Relatos Selvagens (2014), Um Amor Inesperado (2017), entre outros.

Para se ter uma ideia do que Darín faz com seu personagem, colocado como um líder forçado numa situação mortal, não se vê isso todos os dias em produções do gênero. Não apenas ele mostra sua insegurança diante da perigosa nova rotina, como tenta afastar os pensamentos ruins sobre o futuro da filha, em algum lugar da cidade, quando a neve começou a cair.

É interessante notar que uma série como essa, que foi buscar um conteúdo rico e diferente no final dos anos 50, mostra que ainda existe muito o que explorar em obras pouco conhecidas do grande público. Outro exemplo é a minissérie da Amazon Só a Terra Permanece, um fantástico trabalho sobre os sobreviventes de uma praga que dizimou quase 100% da população. A história original foi escrita por George R. Stewart e publicada em 1949.

A primeira parte de O Eternauta tem seis episódios, terminando com um dos mais intensos cliffhangers da telinha. É claro, por ser uma produção intensa e que exige um comprometimento integral, é bem provável que outros seis episódios já tenham sido produzidos e aguardem o momento certo para mostrar o que aconteceu com Juan Salvo e seus amigos — e também a resposta para a pergunta silenciosa: quem será o Eternauta?

Existem muitas boas histórias de ficção científica para serem contadas… Esta foi apenas uma delas!

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