A tragédia grega de Incêndios

A tragédia grega de Incêndios

Não existe nada mais trágico que represente o drama humano do que o milenar texto teatral de Édipo Rei, escrito por Sófocles em 427 a.C. Uma história narrada há mais de dez mil anos, segundo a qual uma profecia condena o jovem Édipo a matar seu pai e depois casar-se com sua própria mãe, Jocasta. Quando ele descobre que sua esposa é Jocasta, ela tira a própria vida, enquanto Édipo fura seus olhos para pagar pelos pecados.

Quando li esse texto pela primeira vez, numa aula de Teoria da Comunicação, fiquei chocado com a criação de um conceito tão tenso e assustador, que até Sigmund Freud a levaria para o divã, como o famoso Complexo de Édipo. A peça de Sófocles é uma metáfora sobre o poder sem limites, mas, valha-me Senhor, como alguém de 500 a.C. criaria uma ideia tão absurda? Desde que li Édipo Rei pela primeira vez, essa história me pareceu pura bizarrice.

Veja, sei que em nosso planeta, as criaturas que aqui habitam têm os pensamentos mais estranhos possíveis. Não estou falando de dizimar populações para conquistar o poder, como Stalin fez, ou de sair do seu país, cruzar os continentes e conquistar mundos desconhecidos como Cabral e Colombo. Estou falando de Ed Gein, o psicopata que inspirou Norman Bates, do clássico Psicose (1960). Ou dos irmãos Daniel e Cristina Cravinhos, que assassinaram os pais de Suzane von Richthofen, a mandante do crime.

Com isso em mente, veja a saga emocional que o jovem cineasta canadense Denis Villeneuve criou com seu primeiro sucesso comercial, Incêndios (2010). A história começa mostrando um grupo de crianças de origem árabe cortando o cabelo, como se fossem servir ao exército. Em seguida, vemos Jeanne Simon, uma das protagonistas, ouvindo o executor do testamento de sua falecida mãe, revelando suas últimas vontades.

Pelo desejo de sua mãe, os dois filhos precisam viajar para o Oriente Médio, localizar o pai e um irmão que nunca conheceram e entregar as últimas palavras de Nawal para essas duas pessoas desconhecidas. O motivo da separação foi a guerra civil dos anos 70, entre facções extremistas religiosas. Passados tantos anos, localizar essas duas pessoas após bombardeios devastadores se torna um desafio para dois estrangeiros.

O interessante é que a história não é linear. Ela vai alternando entre os passos de Jeanne na busca por informações sobre o irmão e o pai, ao mesmo tempo em que vemos Nawal Marwan lutando pela sobrevivência durante a guerra civil. Aos poucos, o público monta o quebra-cabeças emocional, tanto da mãe quanto dos dois filhos. E simultaneamente, percebe-se que essa história não terminará com um momento de reencontro familiar com abraços e beijos. O reencontro existe, mas leva a um pesadelo emocional.

Baseado na peça homônima de Wajdi Mouawad, Incêndios é muito mais do que um soco emocional na alma. É como acordar de um pesadelo dentro de outro pesadelo. Tudo graças ao roteiro e direção de Villeneuve e à montagem de Monique Dartonne, que conseguiu dar uma cadência à história, tanto no passado quanto no presente, mantendo o suspense até a grande revelação.

Incêndios foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011, revelando o talento de Villeneuve para criar dramas morais complexos e cheios de ação, como Sicário: Terra de Ninguém (2015). O elenco é encabeçado por Lubna Azabal, que interpreta a matriarca Nawal, enquanto Melissa Desormeaux-Poulin é Jeanne e Maxi Gaudette interpreta Simon. Destaque também para o veterano Rémy Girard, que faz o advogado que revela o testamento de Nawal.

Não espere um final feliz nesta história. Espere apenas conseguir montar o quebra-cabeças emocional proposto pelo filme. E não pense que vai sair impune quando descobrir a verdade. Ela vai desabar em sua alma, como a imaginária Espada de Dâmocles. Não é uma tragédia grega, mas vai doer. O filme está sendo relançado pela Imovision em 16/10.

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