Ângela Diniz: quando a vítima é transformada em réu

Ângela Diniz: quando a vítima é transformada em réu

Dezembro de 1976. Enquanto o mundo comemora o Réveillon, Ângela Diniz nenhuma conexão com a atriz Leila Diniz – e o namorado Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido como Doca, travam mais uma discussão. O relacionamento havia começado apenas quatro meses antes, quando Doca abandonou a esposa, Adelita Scarpa, e foi viver com Ângela na casa dela em Búzios. Uma união pontilhada de brigas como essa, ou como seria essa também se Doca não tivesse terminado a noite matando Ângela com quatro tiros de pistola.

“Essa história está para ser contada há 49 anos”, disse o diretor Andrucha Waddington durante a coletiva de lançamento da produção Ângela Diniz: Assassinada e Condenada. “É uma história que através do entretenimento a gente vai trazer reflexão para o público e a sociedade”, continuou o diretor.

O enredo da série é baseado no podcast Praia dos Ossos, referência ao local onde ficava a casa de Ângela Diniz. O podcast é uma produção da Rádio Novelo, com idealização e apresentação de Branca Vianna, pesquisa e coordenação de produção de Flora Thomson-DeVeaux e roteiro de Aurélio de Aragão e Rafael Spínola.  

“É um trabalho muito completo, extenso, é uma pesquisa muito rica”, considerou Marjorie Estiano, intérprete de Ângela. O podcast, assim como todo o material de pesquisa foi passado à produção da série.

Tudo não pode ser só isso

Como em toda adaptação de fato para ficção, ou ficção baseada em fato, Ângela Diniz: Assassinada e Condenada cria e condensa personagens e fatos para tornar a história adequada à tela. Um exemplo é o grupo de amigas de Ângela no Rio de Janeiro, em tudo diferente da sociedade mais conservadora de Minas Gerais. “A gente fundiu várias amigas na Lulu (Camila Márdila) e na Gilda (Renata Gaspar)”, explicou Waddington.

Rica, bonita e famosa, Ângela viva era uma estrela da alta sociedade que ganhou do colunista social Ibrahim Suede, vivido na série por Thiago Lacerda, o apelido de Pantera de Minas. Morta, virou um prato cheio para a mídia, transformando a prisão de Doca, a investigação e o julgamento em manchetes. Todos tinham uma opinião sobre o que havia acontecido, incluindo se Ângela Diniz “merecia” ser assassinada por conta de seu comportamento fora do padrão e do esperado.

“Eu me lembro, pequena, em BH, e muitas vezes eu ouvi ‘ah, mas ela pediu isso, ela pediu isso, na verdade, ela provocou, ela buscou essa morte’”. Lembrou Yara de Novaes, que interpreta Maria Diniz, mãe de Ângela que, em certo momento da série lembra a filha de que ela tem tudo. A resposta de Ângela é “isso não pode ser tudo”.

Sem necessidades financeiras para sustentar a si mesma, aos filhos – que ficaram sob a guarda do ex-marido – ou aos pais, aparentemente sem ambições por uma carreira profissional ou artística, a Ângela que emerge da história é uma mulher disposta a viver sob seus termos, especialmente no aspecto sexual. Mas é impossível não pensar que ela desperdiçou sua força, sua ânsia pela vida e uma liberdade financeira com a qual poucos contam.

Tribunal e espetáculo

Doca foi julgado em 1979, dois anos após o fato. Sem qualquer dúvida sobre a autoria do crime, coube ao advogado de defesa Evandro Lins e Silva, na série interpretado por Antonio Fagundes, criar uma tese que mitigasse o feito de seu cliente. Com o Código Penal de 1940 ainda vigente, Lins e Silva apostou na “legítima defesa da honra”.

A tese estabelecia que a agressão ou o assassinato eram aceitáveis quando a conduta da vítima ferisse a honra do agressor. Para fundamentar sua tese, Lins e Silva desenhou uma Ângela adúltera, provocante, manipuladora e viciada em álcool e drogas.

“A série tem uma estrutura que ela tenta, a gente tentou, contar a Ângela e depois o julgamento, uma versão. Porque no julgamento, a Ângela não estava presente pra acusar, na verdade, ela é colocada no banco dos réus”, explicou Waddington. “É uma versão. Na estrutura da série a gente acompanha a Ângela, vê quem ela é até o assassinato, depois você vê uma versão sendo feita a partir do que é dito, do que é suposto, do que é falado. E é uma coisa que continua acontecendo até hoje. Igual. Então, acho que esse é o ponto central de trazer essa série e ela ser tão contemporânea, apesar de ter acontecido há 49 anos atrás, parece que foi ontem. Se você lê os jornais hoje, as coisas continuam acontecendo da mesma maneira ou pior.” Completa o diretor.

Os efeitos do crime

Em 2023, por decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a tese de legítima defesa da honra. Segundo o judiciário, o uso da tese contraria os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Inicialmente condenado a dois anos de prisão com sursis, o que o liberou de cumprir a pena em regime fechado, Doca foi aplaudido ao sair do tribunal. Ele voltaria ao tribunal em 1981, quando o caso foi reaberto por pressão popular. Doca foi então condenado a 15 anos de prisão, cumpriu apenas 3 em regime fechado, passou para o semiaberto em 1987. Em 2006, o assassino publicou o livro Mea Culpa, onde diz que na noite do crime, Ângela tentou encerrar o relacionamento caso ele não aceitasse dividi-la com outros parceiros e o agrediu com uma maleta. Após toda a atenção, e depois de cumprir a pena do segundo julgamento, Doca seguiu a vida longe dos holofotes, morrendo aos 86 anos em 2020.

Durante seu casamento, Ângela teve três filhos. O caçula morreu em um acidente de carro aos 21 anos. O mais velho sofreu um acidente de motocicleta em 1982, o que o deixou com algumas sequelas. A filha seguiu vivendo em Minas Gerais.

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