2014. Após fazer um show para mil e quinhentas pessoas, um grupo de rapazes aguarda calmamente por seu embarque no aeroporto de Guarulhos.
2019. O mesmo grupo é escoltado pela polícia para dentro do estádio Allianz Park. No lado de fora, 40 mil fãs os recebem aos gritos enquanto aguardam para entrar, alguns acampados há semanas em volta do estádio, muitos vindo de outros estados e países.
Entre um ponto e outro, o BTS transformou-se num gigante da indústria musical, embaixador da cultura coreana pelo mundo e um dos maiores agentes da economia de seu país.
Segundo o Hyundai Research Institute, em 2018 o grupo gerou 3,54 bilhões de dólares para a economia coreana, impactando as exportações de alimentos, cosméticos e roupas. O mesmo relatório também indicava que 7,6% de todos os turistas que desembarcaram na Coreia em 2017 visitavam o país por motivos relacionados ao BTS, colocando o grupo no mesmo patamar da Korean Airlines com uma participação de 0,3% no PIB do país.
Não é fácil compreender como essa escalada aconteceu e não faltam analistas atrás da receita que fez do BTS o sucesso que é hoje. Mas a resposta não é tão simples. Envolve história, decisões de mercado, o descumprimento de regras e aquele elemento inescrutável que pode ser definido como “química”.
Uma das mais antigas culturas do planeta, a Coreia passou períodos dominada pela China e depois pelo Japão, saindo da Segunda Guerra Mundial para cair na Guerra da Coreia, que dividiu o país em dois. Após o fim do conflito, a Coreia do Sul buscou a industrialização e o desenvolvimento, saindo de uma situação de extrema pobreza para o posto de “tigre asiático”. Nesse processo, o país descobriu e apostou pesado no “soft power”, o poder dos produtos culturais, o que hoje se traduz no sucesso de produções coreanas na TV, cinema e streaming. Junto com ficção, entra o K-pop, o pop coreano representado por grupos femininos e masculinos compostos por um tipo específico de artista, o idol.
O conceito de idol foi crido por Lee Soo-man, empresário do ramo musical e fundador da SM Entertainment, uma das maiores agências de talentos da Coreia do Sul. No sistema local, moças e rapazes são selecionados, treinados, moldados e lançados pelas empresas. Tudo, do visual à dança, passando pela música e participação em programas de TV é definido pela agência. O objetivo é fazer sucesso e recuperar o dinheiro gasto no preparo dos artistas – sim, eles pagam o que foi investido neles. Daí a escolha por músicas programadas para não criar polêmica, que não fazem comentários políticos, nem entram em choque com os valores sociais, cantadas por jovens que se encaixam nos padrões de beleza. O resultado foi uma fileira de sucessos e o rótulo de fábrica de mesmices.
Para suprir a demanda de novos artistas, as empresas fazem audições periódicas, observam concursos de canto e dança, e vão às ruas à caça de candidatos que atendam às suas exigências. A escalação do BTS é fruto de todas essas técnicas de caça-talentos. O grupo começou com RM (Kim Namjoon, lembrando que na Coreia, o sobrenome vem na frente), que já tinha certo nome na cena de rap underground e foi contratado pela agência Big Hit Entertainment para formar um grupo de hip-hop. Também conhecido no ambiente underground, Suga (Min Yoongi) fez uma audição, mas buscava apenas trabalho como produtor. J-Hope (Jung Hoseok) era campeão regional e nacional de dança e foi contratado após uma audição, assim como V (Kim Taehyung, nenhum parentesco com Namjoon), selecionado numa audição na cidade de Daegu e Jimin (Park Jimin), escolhido numa audição quando era aluno de dança contemporânea na Busan High School of Arts. Jungkook (Jeon Jungkook) estava entre os candidatos do programa de talentos Superstar K quando recebeu convites de várias agências, entre elas a Big Hit. Jin (Kim Seokjin) recebeu o convite para uma audição na rua quando ia para a universidade onde estudava atuação devido ao belo visual.
É após a seleção que se inicia o processo de treinamento. Os aprovados passam a morar em alojamentos mantidos pela empresa onde, além de seguirem com os estudos normais, se dedicam a aulas de canto, dança e atuação. Uma vida de dedicação exclusiva, cansaço e restrições que podem incluir a proibição de celulares, TV e namoro, além de controle do peso para manter o tipo magro e longilíneo considerado ideal. E nem todos serão selecionados para estrear em um grupo. Cerca de trinta trainees passaram pelo dormitório do BTS nessa fase até que os sete membros fossem escolhidos.
Após a definição dos componentes, a Big Hit anunciou a estreia do BTS em 13 de junho de 2013. No competitivo mercado do pop coreano, entretanto, ser parte de uma pequena empresa significava que o BTS tinha de lutar para obter espaço nos programas de TV. Não faltaram pessoas dizendo aos rapazes que eles não tinham chance e que jamais fariam sucesso, já que não pertenciam à uma das três grandes, a SM Entertainment, responsável por grupos como Girls’ Generation, EXO e SHINee, YG Entertainment, responsável por nomes como BLACKPINK e BIGBANG, e JYP, que tem em seu cartel grupos como TWICE e Stray Kids.
A rejeição desse período aparece com frequência nas letras do BTS. Começando com Cypher Pt.1, ainda no início da carreira do grupo, em que RM, Suga e J-Hope enfrentam os opositores, dizendo aos críticos que escondam seu ciúme. O enfrentamento segue em We Are Bulletproof e We Are Bulletproof Pt. 2, quando desafiam quem ainda diz que eles devem parar, e em Cypher Pt. 4, quando agradecem aos haters. Em We are Bulletproof: The Eternal, o grupo volta a relembrar os tempos em que tinham apenas sonhos, o que certamente incluía sucesso em casa e no mercado asiático, talvez um single internacional como o Gangnan Style de Psy.
A conexão com o público, entretanto, veio quando o grupo estabeleceu sua voz fora da caixa do K-pop com canções que falam de temas evitados pelo livro de regras do gênero.
Ao longo dos anos, o BTS tratou de saúde mental em The Last (parte da mixtape Agust D), da pressão dos adultos em Dope e N.O., dos sentimentos conflitantes gerados pelo sucesso em Sea. Na dilacerante Tomorrow, relacionamentos, desemprego, famílias desfeitas e sentimentos de desespero são escancarados para falar de esperança.
Autoaceitação (Epiphany), amor-próprio (Fake Love e Answer: Love Myself), crítica ao vazio do materialismo (Go Go), perda (Butterfly), relacionamentos que terminam como em Let me know e House of Cards, ou que seguem enfrentando os obstáculos, como em Don´t Leave me também aparecem nas letras do grupo, a grande maioria compostas pelos próprios membros, contrariando a cartilha de controle do K-pop de não criar discussões que possam prejudicar o fluxo financeiro.
Quando setores do governo faziam tudo para que o naufrágio da barca Sewol, (desastre em que um barco com excesso de peso matou 304 passageiros, a maioria adolescentes) ficasse no passado, o BTS doou dinheiro às famílias das vítimas.
O grupo também lançou um de seus hits mais marcantes, Spring Day, um hino sobre saudade, perda e anseio pelo passado. Não há palavras sobre o desastre na letra, mas as imagens de roupas empilhadas e vistas marítimas do vídeo da canção e a letra que alude a um evento triste no passado são referências claras ao desastre que marcou o país.
Talvez esteja nessa universalidade de temas, e a coragem dos membros em abordá-los o segredo que fez de um grupo que canta em coreano – idioma que não está entre os dez mais falados do planeta – um sucesso mundial a ponto de influenciar tudo o que toca. Roupas, bebidas e até amaciante. Seus rostos estão por toda parte e não importa o que um membro do BTS use ou fale a respeito, o produto desaparecerá das prateleiras em segundos.
Incluindo os livros que inspiraram os álbuns do grupo. Em 2016, Damien, de Herman Hesse, subiu no ranking dos mais vendidos quando o título serviu de inspiração para o álbum Wings, levando milhões de fãs a lerem e analisarem o texto. O feito repetiu-se com Aqueles que Deixam Omelas, de Úrsula K. Le Guin, inspiração do álbum You Never Walk Alone, e também com os títulos que inspiraram os álbuns seguintes, A Maior de Todas as Mágicas, de James Doty (Love Yourself 轉 TEAR), A Arte de Amar, de Erich Fromm (Map of the Soul: Persona) e Jung. O Mapa da Alma de Murray Stein (Map of the Soul: Persona).
Em agosto de 2021, a editora Hyohyeong Publishing anunciou que voltaria a imprimir o livro Dying Young, uma antologia sobre a vida e o trabalho de doze artistas coreanos que morreram cedo. Fora das prateleiras há dez anos, o livro voltou a ser procurado e chegou ao topo das listas de mais vendidos. Tudo porque RM, leitor voraz e apreciador de arte, apareceu lendo o livro em um vídeo sobre os bastidores do grupo.
Em 2018, o National Gugak Centre, instituição dedicada à preservação da música tradicional coreana, relatou aumento no interesse em instrumentos tradicionais. O motivo, uma única apresentação do BTS em que o grupo mesclou sons tradicionais à canção Idol.
Parada obrigatória
A grande pergunta no dia em que o BTS completa nove anos é o que vem a seguir, tema do álbum Proof lançado na última semana. Composto por apenas três músicas novas, o álbum é uma antologia que reúne canções de várias eras do grupo. Longe de ser um álbum repleto de referências capazes de manter o fandom esmiuçando cada frase e fazendo conexões entre várias músicas e álbuns anteriores, como Wings, Proof parece mais uma pausa. Não tem sequer uma novidade de grande impacto como Not Today ou Black Swan. E uma pausa é o que o BTS tem à frente.
A lei coreana determina que todo homem deve prestar o serviço militar por um período de 21 meses. Os rapazes podem, entretanto, escolher quando vão se alistar, podendo iniciar o serviço militar entre 18 e 30 anos. A maioria escolhe cumprir o serviço logo após terminar o ensino médio ou após um ou dois anos na universidade. Para os idols, entretanto, esse é o período mais fértil de suas carreiras voltadas prioritariamente ao público jovem.
Os fãs, obviamente, e os setores da economia que têm se beneficiado do sucesso do grupo prefeririam que o governo dispensasse o BTS do serviço militar para que eles seguissem gerando divisas. Mas essa é uma questão complexa, com o povo coreano rejeitando qualquer ideia de privilégio. Mesmo para os idols considerados responsáveis por revitalizar o turismo em Seul, aumentar a venda de livros e promover a cultura de seu país.
Em resposta à questão, os membros do BTS já declararam que estão prontos para cumprir suas obrigações militares, o que podem fazer todos de uma vez ou cada um a seu tempo. A primeira opção tiraria o BTS do mercado por dois anos. A segunda teria o grupo reduzido a três ou quatro membros por vários anos, mas manteria o nome no mercado.
Qualquer que seja a solução, o futuro pós-serviço militar é uma incógnita. Os rapazes estarão mais velhos e podem não ressoar com as novas gerações como o fizeram com a geração que passou da adolescência à vida adulta junto com eles. Os sete podem decidir buscar outras atividades e deixar o BTS como parte de seu passado a ser revivido em antologias e shows especiais.
Outros grupos passaram por essa fase e seguem trabalhando. Mas nenhum deles chegou a ser contado como parte do PIB da Coreia.