Conto | O vaqueiro da madrugada

Conto | O vaqueiro da madrugada

Esse caso que vou te contar, aconteceu faz uns 30 anos, mais ou menos. Lá no interior da Bahia, quase com a divisa com Sergipe.

Jurema e Jandira eram duas irmãs que moravam com os pais e o irmão. Jurema a mais velha, depois o irmão Jurandir e, por último, Jandira, a mais nova dos três.

Era uma família que vinha da mistura de índios, ou indígenas como se fala agora, com ciganos vindos da Europa. Todos saíram de uma pele branca, cabelos pretos e lisos. Era uma formosura.

O pai das crianças sempre foi muito religioso. Não deixava de acender sua velinha no altar, com as imagens dos santos e entidades que conheceu na Umbanda e na igreja. Era frequente o cheiro de vela acesa no interior da casa, onde todo mundo já tinha se acostumado.

Todas as noites, o pai deles, seu Assis, colocava as crianças na cama, dava sua benção sobre elas e ia cuidar de seus afazeres antes de ir dormir.

A porta do quarto das crianças sempre ficava entreaberta. Não se trancava a porta, nem das meninas, nem do menino. Era a regra da casa.

O quarto das meninas dava na lateral da sala de estar, onde também ficava o altar do pai, na parede bem em frente da porta do quarto. Para a esquerda estava a porta da sala de jantar, que na outra parede, a da frente, tinha a porta da cozinha e a porta do quarto do seu Assis com a esposa.

Em uma noite quente, seu Assis colocou Jurandir na cama, deu a benção e foi ver as meninas. As duas conversavam quando o pai entrou:

– Vamos, minhas pequenas, já tá na hora de dormir – disse Assis.

– Ah, painho, estamos sem sono – disse Jandira com um pouquinho de manha.

– Deixe disso. Amanhã vocês duas têm aula e não quero gracinha pra levantar. Bora se aninhar – e foi em direção da mais nova e já dando um beijo em sua testa.

Cobriu a pequena e disse o já conhecido:

– Que Jesus lhe faça companhia.

Olhando pra Jurema com aquele olhar acolhedor, disse:

– Você tá sem sono também?

– Sim, painho. A gente tava falando do boiadeiro da madrugada – revelou a menina.

– E isso lá é assunto pra essa hora? Já disse pra vocês que quando escurece temos que evitar essas coisas, pois eles podem vir nos visitar – e pulou pra frente, com as mãos pra cima, fazendo uma garra pra assustar Jurema.

A menina deu um grito de susto e rindo ao mesmo tempo. Fingiu correr do pai indo pra cama. Jandira ria em seu leito:

– Deite, minha querida. Vamos preparar o sono.

Jurema se deitou, se cobriu e esperou o beijo na testa:

– Que Jesus lhe faça companhia.

Deixou a porta entreaberta e foi pra sala.

Ouvia as meninas rindo e conversando entre si. Foi conferir as portas e janelas, verificar se estava tudo bem fechado pra poder se deitar. Cedo teria que ir pra prefeitura, onde trabalhava.

Foi verificando tudo e pensando no que as meninas haviam revelado como assunto. O boiadeiro da madrugada. Todos na cidade sabiam dessa história. De um vaqueiro que passava pelas ruas tangendo sua boiada. Todos conseguiam ouvir em suas casas o chamado do homem. Mas quando saiam para ver, não tinha nada.

Não tinha um cidadão na cidade que não ouviu a boiada passando e ao tentar ver só viam a escuridão das ruas.

Foi até a porta, passou a chave. Conferiu as janelas, deu uma olhada no quintal pra ver se o cachorro dormia na casinha e sentou no seu tamborete pra fumar seu cigarro olhando as estrelas. Enquanto fumava, ainda podia ouvir as crianças. Não se preocupou, elas iriam dormir em instantes.

Ao terminar seu cigarro, fechou a porta atrás de si e foi em direção ao seu quarto. A esposa já estava deitada e de cara feia. Ela sempre estava brava com alguma coisa:

– Você mima muito essas meninas – disse a esposa quando ele entrou – vão ficar muito mal acostumadas com esse paparico seu.

– E desde quando carinho e bem querer são coisas que se acostuma mal? – disse seu Assis – eu as trato com carinho pois são minhas filhas, como também o Jurandir. Dar boa noite e colocá-los pra dormir é só um cuidar de um pai.

– Eu já disse. Um dia elas irão pisar em você. Com criança temos que ter braço duro.

– Eu não vou ter braço duro com ninguém. Nem com você que vive brava pela casa eu tenho, imagina com os três que são uns amores?

– Escute o que lhe digo, – disse a esposa, que se virou pro lado, pra dormir.

Assis ficou olhando a esposa, que como sempre era nervosa, com a amargura. Não tinha um com quem não tivesse uma implicância.

Assis deitou, se aninhou e começou sua prece antes de pegar no sono.

Se não fosse as meninas ainda conversando no quarto, o silêncio seria total. Uma cidade de interior, mais de onze da noite, não tem alma viva na rua. Todos em seus lares, assistindo uma novela ou já preparados pro sono.

Jurema e Jandira ainda estavam falando sobre o boiadeiro da madrugada. Elas planejavam uma noite daquelas das duas ficarem acordadas e esperar o barulho do vaqueiro para ficarem observando pela fresta da janela e tentar conseguir ver o bendito homem. Ele e seus bois assombrados:

– Aí a gente pode ficar bem agachada perto da janela – dizia Jurema – e vamos poder ver ele.

– E se ele vê a gente?, perguntou Jandira com olhar apreensivo.

– Ele não vai ver, vamos estar no escuro.

– Lá fora também vai estar escuro, como vamos ver ele?

– Tem a luz da Lua – encerrou Jurema.

Quando Jandira ia responder, ela sentiu a luz que vinha da vela acessa na sala ser coberta por um corpo. Um homem estava na porta, observando-as do batente, parado em pé.

Jandira tomou um susto, primeiro com o encobrir da luz, depois ficou achando que seria o pai, vindo ralhar com elas por não estarem dormindo:

– Painho? – perguntou Jandira.

Jurema, que ainda estava distraída pensando no plano para ver o boiadeiro da madrugada, não tinha visto o homem parado lá na porta. Quando ouviu Jandira perguntar pelo pai, conseguiu ver e se assustou:

– Pai, já vamos dormir – disse Jurema.

O homem não respondeu. Ficou imóvel, cobrindo a luz que vinha da sala e olhando pra dentro do quarto.

Jurema, que sempre foi a mais atirada, perguntou:

– Painho, por que não fala nada?

– A gente já ia dormir, verdade – disse Jandira.

Ao notarem que a pessoa ali não se movia, não falava e não entrava no quarto, ficaram apreensivas. Sentiam um cheiro forte de couro, terra batida e cheiro de animal. Até o cheiro da vela mudou. E o cheiro de vaca, aquele de vaca no pasto, que só quem já andou por perto sabe qual é. Os cheiros tomavam todo o quarto, a mistura deles criava uma atmosfera um tanto sombria. Não era um cheiro de uma vaquejada. O novo cheiro era de bicho morto.

Jurema sentou na cama para poder ver melhor, enquanto Jandira se tremia e não conseguia falar:

– Quem é você? – perguntou Jurema.

Não obteve respostas:

– Quem é você? Vou chamar meu pai!

O homem na porta mexeu a mão que estava junto ao corpo e deixou desenrolar um chicote. Um chicote de laço, daqueles que os vaqueiros usam para pegar os bois desgarrados.

O barulho do chicote tocando o chão, com o braço dele se levantando, deixou as duas em pânico. Já não era mais o pai delas que estava ali. Era alguém de fora.

Jurema deu um grito alto, um grito de pavor, que tirou Jandira do estado de paralisia, e ela também gritou. O grito de Jandira era agudo, daqueles que fazem as pessoas tamparem os ouvidos. Mesmo com os gritos, o homem não se mexeu. Continuou no batente da porta, com o chicote desenrolada na mão.

Assis, quando ouviu o grito, deu um pulo na cama. “Elas estavam conversando a pouco, o que aconteceu?”, pensou.

Se levantou correndo e a mulher no seu encalço. Ela já queria pegar o chinelo pra dar nas duas tagarelas. O pai das meninas cruzou a sala de jantar em um passo só, entrando na sala de estar e virando em direção ao quarto das meninas que estava com a porta aberta.

As duas continuavam gritando de dentro do quarto, Jandira com a cabeça encoberta pelo fino lençol que usava pra se cobrir de noite e Jurema sentada, com os olhos cheios de lágrimas, gritando alto em desespero.

O irmão, que estava no quarto ao lado, também ouvindo os gritos, se levantou e foi ver o que era aquilo.

Assis entrou no quarto e acendeu a luz. Procurou com os olhos se tinha alguma coisa assustando as meninas e encontrou o quarto como o tinha deixado, só com elas.

A mãe soltou de imediato: “O que vocês duas acham que estão fazendo?”, e veio pra cima da cama que estava mais perto, da Jandira:

– O homem, o homem. O homem na porta, pai, – Jurema apontava a mão na direção da porta e chorava.

Jandira tirou a cabeça de baixo do lençol e procurou o pai. Ia se levantando quando a mãe a segurou pelo braço e a fez voltar para a cama com força:

– Eu quero saber que palhaçada é essas de vocês duas.

Jandira, sentindo a força que a mãe colocava em seu braço, chorou mais forte, se libertou da pegada e correu para o pai:

– Painho, o homem na porta. A gente achou que era o senhor.

– Que homem, minha filha? Não estou entendendo – perguntou Assis tentando se situar.

Jurandir, que estava pelo batente da porta, arregalou os olhos e procurou em volta, achando que poderia encontrar alguém por ali.

Jurema respirava com violência. Seu peito se mexia tanto que pensou que poderia explodir. O medo ainda tomava conta do seu corpo e ver sua irmã chorando a fazia se sentir pior. Queria proteger a irmã caçula. Ao mesmo tempo se revoltou, vendo sua mãe ficando brava com Jandira sem ela ter culpa:

– A gente não teve culpa – disse Jurema – tinha um homem parado na porta. Ficou ali sem falar nada e sem se mexer. A gente achou que fosse o pai, mas ele não nos respondeu. Ficamos assustadas quando ele desenrolou o chicote e levantou o braço.

A mãe, olhando furiosa pra ela, disse: “Que homem? Tá vendo alguém aí além da gente? Vocês duas que estavam aprontando uma”.

Assis emendou?

– Deixa disso, mulher. Não tá vendo a aflição das meninas? Elas se assustaram de verdade – disse o pai delas abrindo os braços para Jurema, que foi para a sua proteção.

– Assustadas nada, tão é com graça – ralhou a mãe novamente, indo na em direção a porta – eu disse que elas iriam fazer você de gato e sapato.

Quando chegou ao batente ela estancou. Sentiu o cheiro de animal morto e arregalou os olhos. Sentiu o cheiro de couro, de terra batida, da mudança do cheiro da vela e todos ouviram o grito que veio da rua, mas que invadiu a casa, reverberou dentro de cada um e tomou todos os cômodos:

– Ê, boi!

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